Se privatizada, a saúde deixa de ser um bem público como direito
social para se tornar mais um produto inserido na dinâmica capitalista
global, em que a qualidade do atendimento é preterida pela quantidade
José Tanajura Carvalho*, na Carta Maior
A proposta de destruir o SUS, na tentativa de privatizar a saúde
pública brasileira, tem início no Governo FHC e veio embrulhada no
contexto do Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado. De fato, a
Reforma fez parte da ação governamental como componente da estratégia
neoliberal, compreendida por três ações básicas: a) substituição ao que
se chamou de administração pública burocrática e clientelista por uma
administração gerencial ou nova administração pública; b) modificação do
sistema previdenciário, transformando-o em fundos de investimento; c)
privatização de empresas e serviços públicos passíveis de reverterem
seus objetivos sociais para a busca do lucro..
O princípio básico da proposta sintetizava-se na administração
gerencial, estabelecida nas relações de mercado, inclusive naquelas
atividades consideradas como bens e serviços públicos em geral,
especialmente a saúde e a educação. A implantação dessa política assumiu
procedimentos açodados do governo, quando até mesmo aspectos formais
não foram de todo resolvidos na premência de impor o novo modelo e por
concepção autoritária de governar. Segundo COSTA FILHO: “… o processo
[referindo-se à Reforma] se afasta de qualquer padrão democrático na
medida em que se constrói sobre o informalismo e o lobby, de natureza
intrinsecamente excludente” (COSTA FILHO, 1997, p. 188). Com tal
formulação, a Reforma se apresentou excludente, autoritária e na
confirmação do caráter intransitivo do Estado brasileiro quanto à
acessibilidade popular da informação-pública e de resistência às
conquistas sociais.
Todavia, a reforma do aparelho estatal, empreendida por FHC, ficou
inconclusa diante da perspectiva distorcida da realidade socioeconômica e
geopolítica do país, do inconsistente aspecto operacional, e da
rejeição tácita pelos segmentos populares da sociedade. Porém, a sua
essência resistiu e se consolidou. As agências autônomas, por exemplo,
foram estabelecidas e fortalecidas, e se mantiveram insuladas no
posicionamento de total independência do governo e, como sói acontecer,
das classes populares, dialogando intensa e diretamente com grandes
grupos econômicos e financeiros e representantes da elite burocrática.
Bem como as proposições neoliberais se radicaram nas demais esferas de
governo.
O entendimento, enfim, é de que a reforma do Estado FHC avançou até
onde foi possível e politicamente satisfatória ao capital. Haja vista
que à época houve a promulgação da Emenda 29, com previsão de garantia
de recursos para a saúde pelos governos dos municípios, dos estados e
federal. Porém, enfaticamente, a Emenda 29 transparece ser parte da
estratégia para disciplinar os recursos da saúde que, revestida no
simulacro de uma proposta com alcance popular, viabilizaria os
investimentos de interesses privados a ser completada com a destruição
do SUS. Contudo, os segmentos capitalistas ligados à saúde não puderam
contar com o timing político favorável à reversão em benéficos próprios
das perspectivas de mobilização dos recursos públicos financeiros em
montantes colossais e garantidos que a nova emenda constitucional
projetava. Primeiramente, houve a necessidade política de dar tempo ao
tempo para o governo se refazer do esforço despendido na venda das
empresas estatais a preços aviltantes. Fatos que não deixaram de
melindrar a opinião pública, mesmo tendo sido um processo realizado com a
escamoteação de informações sobre o processo de desestatização e o
deliberado cerceamento de participação da sociedade civil,
principalmente das classes populares, no debate que o assunto exigia.
A alternativa prudencial parece ter sido a de aguardar momentos
propícios para, então, voltar à privatização de atividades com notório
interesse social e sujeitas à mobilização política de segmentos
populares que se sentissem prejudicados, como, por exemplo, a saúde
pública, previdência social, grandes extensões do território nacional
destinado à agricultura em larga escala, e, no plano dos negócios, as
vendas do Banco do Brasil, Caixa Econômica Federal e o que ainda havia
de público na Petrobras. Todavia, a alteração do mando político no
cenário nacional, em 2003, alterou substancialmente essas pretensões.
A partir de 2003, os setores privados voltaram à carga com o objetivo
de mercantilizar a saúde no Brasil, com o apoio sustentado na parceria
com o Banco Mundial, instituição que, segundo RIZZOTTO (2000), age nos
“… interesses político/ideológicos e econômicos que tem permeado
determinados processos, aparentemente favoráveis à consolidação do SUS,
mas que em realidade modificam substancialmente a configuração original
deste Sistema”. Como parte de sua estratégia, essa instituição
financeira internacional publicou, em 2008, o livro Desempenho
hospitalar no Brasil: em busca da excelência, de autoria de Gerard La
Forgia e Bernard Conttolenc, representantes da Interhealth Soluções em
Saúde e da Universidade de São Paulo. Em síntese, os autores procuram
apontar a incapacidade de o sistema hospitalar brasileiro se apresentar
em níveis de eficiência exigidos para atender a demanda (sic) crescente,
e, implícita e explicitamente, indicam como solução a privatização do
sistema de saúde, portanto, com a exclusão dos princípios da equidade,
universalidade e gratuidade no formato original do SUS, sustentado na
CRFB, Art. 196, e Leis nº 8080/1990 e 8142/1990.
A eficiência do aparelho estatal, alinhada no discurso neoliberal
desses autores, é estabelecida na lógica
recursos/custos/oferta/demanda/lucro em saúde, e deverá se propagar,
continuamente, na fundamentação da aliança entre o Estado e o mercado de
saúde. Não é difícil compreender que o estratagema é permitir o
processo de cessão paulatina, pelo Estado, dos aparelhos de saúde,
concomitante com o repasse de recursos públicos, perdão de dívidas e
incentivos fiscais a grandes grupos privados constituídos segundo as
regras do terceiro setor, seguradoras e grandes empresas de hospitais.
No tempo em que se enalteceriam, com instrumentos de marketing político,
os direitos individuais e não mais da sociedade como
pedagogia-subliminar de controlar e transformar as necessidades de saúde
em demandas de serviço.
A proposta dessas políticas de saúde não se efetiva a partir das
causas de aumento das necessidades de saúde (promoção e proteção de
saúde; prevenção, tratamento e reabilitação de doenças), mas nas formas
de encontrar condições (infraestrutura hospitalar, tecnologias de última
geração, geralmente importadas, centralização de atendimentos em
grandes hospitais em cidades polos, com o objetivo de ganhos de escala,
transportes de pacientes, precarização do exercício da medicina, etc.)
para dar conta do aumento da demanda (sic). Em outras palavras, a
qualidade da saúde dá lugar à quantidade de atendimento. Isto é, a saúde
deixa de ser um bem público como direito social. Para se afirmar no
contexto das definições segundo as planilhas de custo, como forma de se
manter os riscos financeiros sob o controle rígido em busca do máximo
lucro, expressão objetiva da gestão por resultados, conforme explicito
na Reforma de FHC. Os objetivos da saúde deixariam de ser a conquista do
bem viver, quando, então, passariam a ser geridos, não no enfrentamento
das causas de necessidades vinculadas aos limites e fragilidades das
pessoas, mas a partir de adequações dos recursos determinados pela
imagem-objetivo do lucro. Em resumo, a necessidade de saúde
transformar-se-ia, pois, em demanda de saúde, por conseguinte em
mercadoria a ser pesada, vendida e comprada, por quem, evidentemente,
tivesse dinheiro.
A proposição se completa na mensuração de resultado das ações na
saúde através de metodologias externas de controle de qualidade ou
autorregulação. Uma prática ilusória, pois o atributo saúde implica uma
dimensão qualitativa e subjetiva que transcende qualquer método externo.
Ademais, o corporativismo na autorregulação é decisivo diante da avidez
do capital representado por grandes organizações privadas de saúde, as
agências reguladoras e o próprio BIRD. A estratégia é, assim, desmontar,
política e midiaticamente, a estrutura brasileira de saúde fazendo
romper os ganhos sociais representados pelo SUS, com o sucateamento
final do aparelho estatal de saúde, a partir da restrição do
investimento público e da renuncia fiscal pelas diferentes esferas de
governo em favor dos planos privados de saúde, pelo menos até quando o
sistema permanecer nas mãos do Estado e a saúde como direito social
estiver viva na consciência da sociedade civil, para, então, doar ou
subordiná-lo à iniciativa privada, organizações do terceiro setor,
cooperativas de saúde e seguradoras em geral.
Polêmica PB
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